top of page

Dos 5168 personagens de todas as novelas transmitidas pela TV Globo entre setembro de 1996 a dezembro de 2016, 464 foram negros. Em proporção, foram 8,9% personagens interpretados por atores e atrizes negros, em 104 novelas exibidas em 20 anos.

 

De primeiro olhar, esse número pode não corresponder muito bem à realidade, afinal, cada vez mais é possível acompanhar o trabalho de atores e atrizes negros na teledramaturgia brasileira exibida pela emissora que detém o monopólio de audiência, qualidade e reconhecimento na produção de telenovelas entre o público do país. No entanto, ao observar com atenção, é possível perceber que todos os atores mais famosos que você talvez esteja se lembrando neste exato momento, além de se repetirem nos papéis, como se o principal problema fosse a falta de atores dessa etnia, ainda expõe um grave e antigo problema na representação desse grupo nas telenovelas: a falta de diversidade e a manutenção dos estereótipos.

 

O período de coleta de dados, consultados na sessão ‘Galeria de Personagens’ do site Memória Globo, que reúne detalhes das produções das telenovelas da emissora, além de outras programações, como o jornalismo, não foi por acaso. Compreende o mês em que o primeiro capítulo da novela Xica da Silva, da extinta TV Manchete, ia ao ar, no dia 16 de setembro de 1996. No papel-título a atriz Taís Araújo, que se tornaria um dos principais nomes da TV Globo e, não coincidentemente, uma das atrizes negras que os telespectadores mais se acostumaram a ver nas novelas.

 

Xica da Silva é considerada a primeira novela brasileira a trazer uma pessoa negra no papel principal. Outras tramas já haviam apresentado negros no núcleo protagonista, como na A Cabana do Pai Tomás e A Cor da Tua Pele. Nesses, as mulheres negras não eram de fato as protagonistas, mas os pares românticos dos protagonistas. Houve também o primeiro grande sucesso da teledramaturgia, O Direito de Nascer, da TV Tupi, em que Mamãe Dolores era interpretada pela atriz negra Isaura Bruno. No entanto, além de a mãe adotiva de Albertinho Limonta não ter tido uma carreira promissora após o reconhecimento inicial como uma personagem querida pelo público, como aconteceu com Taís Araújo, a novela imortalizou, como diz o cineasta e pesquisador Joel Zito Araújo, no livro A Negação do Brasil, dois dos vários estereótipos apresentados na novela de 1964, que iriam perseguir os personagens negros durante toda a história das novelas no país.

 

“A clássica mãe negra-presente na literatura do teatro brasileiro desde o período da abolição da escravatura, caracterizada pelo seu amor extremo ao filho e abnegação sublime de qualquer outro relacionamento social e amoroso - e a mammie, transposição de um estereótipo norte-americano de sucesso”, explica o pesquisador na obra.

 

Durante todo o livro, o autor faz uma análise da teledramaturgia brasileira desde os anos 1960 até o final dos anos 1990. Nele e também no documentário homônimo, ambos lançados em 2000, Joel Zito cita vários tipos de estereótipos pelos quais os personagens negros, além da mãe negra e da mammie, que podem ser encontrados na história da teledramaturgia brasileira. O velho Pai João, que, de acordo com ele, tem uma aproximação com o Tom norte-americano, serviçal bondoso, fiel e sábio; a empregada doméstica engraçadinha ou anjo da guarda dos patrões e, claro, o escravo.

 

No entanto, quando questionado se esses estereótipos permanecem nas telenovelas da Globo, o cineasta confessa que deixou de assistir ao gênero na tevê aberta há cerca de cinco anos. “Eu parei de ver telenovelas. Eu cansei do gênero, me irritei”, admite em entrevista concedida para esta reportagem.

 

Apesar disso, ele afirma que, até o momento em que decidiu deixar de ver os lançamentos, conseguiu enxergar alguns avanços. “Até onde eu acompanhei, existe uma pequena mudança. Uma parcela grande de autores e diretores têm evitado alguns estereótipos mais chamativos. A história do mulato trágico, não sei até onde esse estereótipo continua, embora existam alguns atores que mantêm a atuação no estereótipo do mulato”, analisa.

 

De acordo com a definição de mulato trágico pelo crítico de cinema Clyde Taylor, apresentada por Joel Zito em A Negação do Brasil, o estereótipo se refere a “uma pessoa que está presa entre dois mundos: não é branco, nem é negro”. Segundo o crítico, nesse tipo de estereótipo “o negro completo sabe o seu lugar e a que aspirar, não vai aspirar às boas coisas da civilização branca. Mas no estereótipo do mulato trágico ele aspira às coisas que os brancos têm e por isso tenta ser o que não é”.

 

“O que eu percebo, hoje, é que você tem um elenco de atores e atrizes negras fazendo papel de mulheres bonitas. Jovens negros, alguns deles fazendo papéis de galãs em menor projeção. Isso me chama a atenção no período mais atual”, observa Joel Zito, em entrevista para a reportagem. Nessa chave, os exemplos são a própria Taís Araújo, a atriz Camila Pitanga e, mais recentemente, o ator Rafael Zulu, que com frequência faz o papel do homem sedutor.

 

Os fatores que fizeram com que o cineasta percebesse avanços como esses não partiram somente, de acordo com ele, da boa vontade de autores, diretores e outros componentes da indústria da teledramaturgia da TV Globo. Foi o movimento negro, que tem participação ativa de atores e atrizes que fazem parte do quadro da emissora, que dá voz à causa, cobrando por mais visibilidade e, principalmente, por diferentes personagens para aparecer em tela.

 

“Atualmente tem um movimento de mudança dentro da Globo. O Lázaro Ramos é uma pessoa muito ativista dentro da emissora por essa mudança. O tempo todo provocando para incorporar atores, diretores, autores negros. Efetivamente que a Globo está se preparando para alterar esse quadro. É visível essa tentativa”, pontua.

 

Um exemplo de ação promovida pelo ator Lázaro Ramos na frente das telas é o programa de entrevistas Espelho, capitaneado por ele desde 2012. Em cinco anos, o ator já conversou com mais 130 pessoas, sendo que as primeiras delas foram o cantor negro Crioulo, a jornalista negra Glória Maria e o jurista negro e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa.

Vinte anos e
poucos passos à frente

O trabalho de levantamento dos dados para estas reportagens durou cerca de três meses, do meio de agosto ao início de novembro 2017. Consistiu em consultar os perfis de todas as novelas das 18h, 19h e 20h/21h (dependendo da classificação) da TV Globo, no site Memória Globo e Gshow, exibidas entre setembro de 1996 e dezembro de 2016. No Memória Globo, foram analisados os personagens citados na Galeria de Personagens, onde também é possível encontrar a descrição de cada componente da trama. Não foram analisadas as novelas exibidas às 23h (e que possuem, geralmente, menos capítulos que as dos outros horários), as temporadas de Malhação, assim como as telenovelas iniciadas em 2016 e terminadas em 2017. Todos os dados presentes nos infográficos foram coletados exclusivamente para este projeto.

Zezé Motta e Taís Araújo em Xica da Silva (1996) 
Foto: Reprodução/TV Manchete
bottom of page