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"Meu serviço como artista
não é simplesmente entreter"

1-Em setembro, você e Lázaro foram a Nova York representar o Brasil numa premiação que aponta as 100 pessoas afrodescendentes mais influentes do mundo. O que essa experiência te trouxe de compreensão sobre o movimento negro no Brasil e nos EUA, além de outros países?

 

Não dá pra comparar o Brasil com os Estados Unidos, que é um país que tem 12% de população negra e a gente tem 54%, sendo que os caras são muito mais avançados do que a gente nessa questão. Tem um gap muito grande entre os dois países e aí eu acho que vale a gente analisar. A gente tem que entender onde foi que eles deram a volta, mas compreender que a gente veio de uma cultura diferente. Apesar de também ter sido um país escravocrata, mas a maneira como aconteceu a emancipação dos negros lá… Tem até um nome diferente. Lá eles chamam de emancipação dos negros, aqui a gente chama de Abolição da Escravatura. São culturas muito diferentes, mas acho que já tem um estudo de pessoas analisando onde o Brasil se perdeu, no que poderia ter sido uma emancipação. Na real de tudo, é que tinham pessoas reunidas [na premiação] de vários países africanos que estão espalhadas pelo mundo. Ou seja, uma diáspora existe, uma diáspora muito forte, de uma população muito grande, uma diáspora economicamente forte que estão começando a se organizar como num sexto território africano. A África é dividida em cinco territórios [África Meridional, Central, Ocidental, Setentrional e Oriental] e a união africana já tem um território simbólico, que é a diáspora, que seria o sexto território. E aí, precisa se organizar econômica e politicamente pra se sustentar. Eu fui, na verdade, pra um outro lugar, sabe? Na questão racial. Uma outra organização, outro lugar de consciência econômica, um lugar que tava muito distante, o Brasil tá muito distante desse lugar. Mas é bom a gente saber que existe esse pensamento e a gente tem uma referência.

 

2- Eu vejo na sua página no Facebook suas postagens sobre mulheres que inspiram. Na infância, quais eram suas referências midiáticas? Em quem você se espelhava ou se reconhecia? E hoje, quais mulheres negras te inspiram?

 

Na minha infância não tive. No Brasil, as mulheres negras eram silenciadas, invisíveis e tal. Tem uma lacuna na minha formação. Mas agora eu tenho muitas referências, principalmente na literatura, filosofia. Por exemplo, Djamila Ribeiro, Stephanie Ribeiro, Giovana Xavier. Eu tenho recorrido muito a essas mulheres e ao que elas escrevem, sabe? São três intelectuais, que eu acho que a gente tem que jogar luz sobre essas mulheres. Eu poderia falar obviamente da Ruth de Souza e da Zezé Motta, que são atrizes como eu, mas essa geração aí tem que ouvir muito e saber que a gente tem mulheres intelectuais, sabe? Que tem que ouvir, tem que ter acesso a eles. Eu tô falando porque eu sei que falo pra jovens e eu acho importante que esses jovens recorram a textos dessas mulheres.

Pioneira por três vezes durante a carreira, Taís Araújo afirma ser um mulher em construção. Quando fez o primeiro papel numa telenovela brasileira, há 22 anos completados no fim de outubro de 2017, em Tocaia Grande, na extinta TV Manchete, muito provavelmente não imaginaria o marco histórico que definiria no ano seguinte, em 1996, com a protagonista Xica da Silva, na novela homônima. A primeira pessoa negra a protagonizar uma novela brasileira.

 

Oito anos depois, em 2004, ela fincaria mais uma vez seu nome na história da teledramaturgia do país como a primeira negra no papel principal de uma novela da TV Globo, em Da Cor do Pecado. E, para a atriz, a novela não fez sucesso por acaso. “Era uma população que era invisível e de repente se viu e gostou da maneira como foi representada”, disse Taís sobre a maranhense Preta.

 

Mas o personagem mais controverso da atriz viria em 2009, na novela Viver a Vida, na qual Taís Araújo interpretou uma das lendárias Helenas do autor Manoel Carlos (personagem que o escritor repetiu por oito vezes em 33 anos). Se, por um lado, ela se tornava a primeira e, por enquanto, única atriz negra a fazer essa personagem, por outro, muitos observam que essa Helena foi a que menos teve protagonismo numa trama que foi quase totalmente engolida pela história da secundária, que era branca, interpretada pela atriz Alinne Moraes. E Taís admite que lidar com as críticas que sofreu na época não foi fácil. “Mas talvez tenha sido o personagem mais importante da minha vida, foi o que me fez parar pra refletir, pra ver que tipo de atriz eu queria ser”, analisa.

 

Nesta entrevista para o A Cor da Minha Tela, realizada por telefone, Taís Araújo relembra papéis importantes da carreira, como Maria da Penha, do fenômeno do horário das 7 da Globo Cheias de Charme (2012) que, para ela, serviu para dar voz às mulheres invisíveis na sociedade, fala sobre o início na profissão, quando não encontrou pares e teve que escrever sua própria história e criar referências, além de analisar a condição do negro na sociedade brasileira e na mídia de forma geral.  

No passado, a atriz admite que não pensava muito bem sobre sua posição de artista (nem tinha certeza se continuaria na profissão). Hoje, ela se vê como uma mulher que se analisa, questiona e debate consigo mesma e com quem também deseja debater. Trabalho que não faz sozinha, já que o seu marido, Lázaro Ramos, lançou este ano um livro em que percorre sua carreira de ator enquanto reflete sobre ser negro no Brasil. “Eu tô num momento público de construção de identidade!”, enfatiza Taís.

5- Em uma entrevista, você afirmou que o texto de Manoel Carlos para Helena, em Viver a Vida, não te dizia nada. O que você esperava dessa Helena e o que ela realmente foi? Você tinha esse tipo de reflexão enquanto fazia a novela ou somente depois que acabou?

 

Na hora eu sabia que não tinha muito material dramatúrgico pra trabalhar, eu não tinha como dar a volta ali, o que me apresentado era pouco. E eu também já tava muito frágil por conta das críticas, então não tinha nem capacidade de olhar desconfiado, sabe? Tava tudo misturado emocionalmente ali. Era realmente incapaz. Então, não posso só dizer que não tinha material de trabalho, quando eu também não tinha o que dar naquele trabalho, porque tava muito frágil. Mas talvez tenha sido o personagem mais importante da minha vida, foi o que me fez parar pra refletir, pra ver que tipo de atriz eu queria ser. E foi o personagem que eu realmente entendi que faltava a minha identidade negra ali nele e presta conta na minha interpretação também. Então, eu acho que se eu tivesse essa consciência toda naquele momento, sabe? Se eu soubesse o quanto a minha identidade era rica naquele momento, e o quanto ela viria nas composições das minhas personagens, talvez a personagem tivesse sido outra.

6-E qual a sua opinião sobre a cena em que sua personagem Helena leva um tapa no rosto de Teresa, interpretada por Lília Cabral? Aquela cena te ofendeu de alguma forma? E essa opinião mudou da época em que você gravou a cena até hoje ou permanece a mesma? Como você se sentiu fazendo a cena?

 

Naquela época eu não tinha como analisar nada. Não tinha condições. Percebi que bateu muito forte nas pessoas e é a cena mais comentada da novela até hoje.

7- Como o racismo se apresentou pra você? Quais são suas primeiras lembranças de manifestação do racismo? Foi de forma violenta ou, como geralmente acontece no Brasil, de maneira velada?

Ele se apresentou de muitas maneiras, né? De todas as maneiras, tanto a estrutural quanto a institucional, como é pra todo mundo. E todas as maneiras são violentas. A violência não é só verbal ou física, a violência também tá nas sutilezas. Como Kabengele [Munanga, antropólogo] fala o racismo no Brasil é o crime perfeito, né? E é verdade, ele é muito sutil, ele vai minando as pessoas. Vai minando a autoestima, vai minando a confiança, como se você fosse incapaz de tudo. Quando, na verdade, você é capaz de tudo. Então, o racismo se apresentou pra mim de todas as maneiras, como acontece com todo e qualquer negro no país. Eu não fui privada de nada.

8-Houve um momento no qual você se reconheceu como mulher negra ou isso sempre existiu? A mídia fez parte desse reconhecimento?

Não. O meu reconhecimento foi sozinha mesmo, foi depois da questão da Helena, o que aquilo queria dizer… Foi no teatro, na verdade. Foi logo na sequência, depois do nascimento do meu filho. Foi num momento bem solitário, muito importante.  

9-Então foi algo recente.

É, levando em consideração o tempo de carreira que eu tenho, vinte e poucos anos, isso aconteceu de oito anos pra cá.

10- Xica da Silva é considerada a primeira novela que traz uma personagem negra no papel principal. Você já disse em entrevistas que não tinha noção disso na época. Mas hoje você enxerga a importância de ter sido a primeira atriz negra a protagonizar uma novela brasileira?

Olha, com todas as minhas críticas que eu tenho sobre a novela, que hoje em dia eu poderia ver com um olhar mais crítico… Sim, hoje eu tenho consciência, mas na época eu não tinha consciência alguma. Na época, eu tava só fazendo mesmo, 100% intuição.

11- No início da sua carreira, você encontrou outros jovens atores negros que também estavam começando?

Sabe que eu não tive pares? Nem na escola, nem no trabalho. Jovens, da minha idade, não tinha. Era eu sozinha. Tinha Isabel Fillardes, mas que era mais velha do que eu, já tava no mercado de trabalho. Da minha idade, não tinha ninguém, eram todos mais velhos do que eu. Hoje em dia nem tanto, né, mas na época eram todos mais velhos. Eu com 17 anos tinha colegas de trabalho de 50! Tudo idade pra ser meus pais, eram as pessoas com quem eu convivia.

12-Você teve alguma dificuldade por ser negra?

Olha, sempre tem, Ana. Tem, mas a gente passa, a gente consegue resistir, sabe? E sobreviver. Claro que tem, o tempo inteiro. Quando você não tem pares, você tem que inventar uma história que não foi contada antes. Você não tem nenhuma referência. Tem que inventar uma história pra poder resistir e foi isso o que eu fiz o tempo inteiro. Tive que inventar um caminho, entendeu? Tive que inventar um norte.

No sentido horário: Xica da Silva (Xica da Silva, 1996); Helena (Viver a Vida, 2009) e Maria da Penha (Cheias de Charme, 2012) 

13- Em muitas das entrevistas que eu fiz, algumas pessoas me disseram formas diferentes do que seria representatividade e como fazê-la acontecer. Alguns falaram que é a falta de autores negros que se identifiquem com o que é ser negro e coloque isso nas histórias; outros, que a gente precisa criar nossas próprias histórias em vez de esperar que um espaço seja aberto, ou seja, criarmos nossos próprios espaços. Para você, qual é a melhor forma ou a ideal, se é que isso existe, de ocuparmos espaços, sermos representados? Tanto nas novelas quanto na mídia de uma forma geral?

 

Eu acho que tem que ser de todas as formas possíveis, sabe? Eu acho que a gente tem que produzir, sim, mas eu acho que as grandes empresas têm que absorver esses profissionais também. E tem que ser uma demanda do público negro também para as grandes empresas, sabe? Exigir que se sinta representado, que esteja representado ali. E isso acontece, gente, tem resultado. Porque a gente tem uma televisão que é comercial, entende? Ela vive de demanda das pessoas, de pessoas que consomem. Isso vai desde a publicidade até o entretenimento. Acho que falta uma coisa aos brasileiros entenderem, e que os americanos já entenderam, que é o poder do ‘blackmoney’. Eles são tão organizados economicamente que, quando eles não se sentem representados, não consomem, seja o que for. A gente vive num mundo capitalista e isso bate no cerne, no principal pilar desse mundo. E aí quem não vai querer atender essa demanda? Todo mundo. Desde o entretenimento, publicidade, jornalismo, todo mundo! Acho que falta conhecimento, consciência desse poder econômico. A Monique Evelle, do Desabafo Social, mostrou uma pesquisa de que o dinheiro que circula na comunidade negra é de R$ 1,5 trilhão. Você imagina se as pessoas se organizam economicamente! Quebra qualquer coisa, amor. Quebra e levanta qualquer coisa. Quando ela falou desse número também, eu vi numa palestra, eu falei de cara “mentira que é tudo isso!”. E isso é só no Brasil, tá?

17- No último dia 16 de outubro, você completou 22 anos de carreira. Como analisa sua posição como atriz negra no cenário da televisão brasileira?

 

Eu acho que no início eu não entendia muito bem o que significava, acho que o mercado também não entendia muito bem. Eu era uma menina, nem sabia se ia continuar sendo atriz. Comecei a trabalhar muito, muito jovem. E com o tempo, acho que as pessoas me viram amadurecendo e, de fato, eu fui amadurecendo e entendendo qual era o meu lugar. Esse lugar que eu ocupo hoje. Meu trabalho principal é ser uma atriz. A partir do meu trabalho, eu tenho consciência de que eu falo com muita gente e com muita gente que precisa falar mesmo. Que tá a fim de debater, de conversar, de entender. E aí, eu acho fundamental fazer uso desse trabalho pra debater, porque eu também tô nessa construção, sabe? Eu também tô me construindo ainda. Então, quando eu escrevo qualquer coisa no Instagram, pode perceber que a maioria dos meus posts termina com uma interrogação. Eu tô tentando jogar o debate adiante, sabe? Quando eu jogo esse debate é pra fazer as pessoas refletirem, mas é principalmente pra fazer com que eu reflita também. Eu tô num momento de construção de identidade mesmo e bem explícito. Público! Então nesse momento tudo pode acontecer. Eu vou errar, vou acertar, vou me expor. Mas acho que isso também tem um pouco de serviço. Meu serviço como artista. Não é simplesmente entreter.

14- Você fala em um post no Instagram que a personagem Penha, de Cheias de Charme, salvou sua carreira. A gente também sabe que a maioria das empregadas domésticas no Brasil são negras. Qual foi o impacto, na sua visão como mulher e atriz negra, dar protagonismo a uma empregada doméstica negra em uma novela que fez sucesso e é lembrada até hoje? A novela te ajudou de alguma forma a compreender melhor o lugar de ser uma doméstica negra no contexto de preconceito e racismo que existe no Brasil?

 

Isso é uma coisa que se discute muito. ‘Ah, porque o negro tá no papel de empregado, num papel subalterno’. Gente, o problema não é esse. O problema não é a profissão. A questão é a importância que ele tem na trama. No caso da Penha, tinha um protagonismo muito forte ali, né? E era incrível dar a voz a essas mulheres, que são invisíveis na sociedade. E muitas conquistas foram feitas com essa novela. Foi aprovado o direito das empregadas, a novela deu esse impulso. Dar luz, né? A novela não foi sucesso por acaso, não. Ela foi um sucesso porque a população que não se via representa teve a possibilidade de se enxergar e aí abraçou a novela. É uma população gigantesca. Mesma maneira que Da Cor do Pecado foi um sucesso, gente. Era uma população que era invisível e de repente se viu e gostou da maneira como foi representada. Tá aí a importância da demanda, entendeu? Da cobrança.

 

15-A importância de entrar nesses espaços.

 

Sim. Mas a gente não é dono desses espaços. Tem que ter muito jogo de cintura, política, diplomacia. Não é difícil fazer. Porque tá tudo ligado ao econômico, isso o que eu tô falando. Pra gente iniciar uma conversa. Hoje em dia, tem consciência da importância dessa demanda e de suprir essa demanda, sabe? E viu o quanto foi lucrativo quando foi apresentado.

 

16-Então você vê uma mudança de representação de negros na televisão? Por exemplo, a nova Malhação -Viva a Diferença que está recebendo elogios, trazendo personagens negros, debates sobre o racismo.

 

Eu tenho visto uma mudança, sim. De que eu comecei pra cá, com certeza. De uns vinte anos, o país ampliou muitas mudanças. Muitas mudanças boas, assim, na questão negra principalmente. De entendimento, de se entender, de entender como consumidor, de entender que precisa ser representado. Começou a se entender, de gostar da gente, né? Com a essência, com todas as características físicas, genuínas. Então tem uma mudança aí de identidade. Uma reconstrução, uma reinvenção, uma reconstrução da identidade que é muito valorosa e isso tá refletindo no entretenimento. E na publicidade também, eu acho. Hoje em dia quando acontece qualquer coisa, já falam ‘olha, isso não dá gente, isso não cabe mais, não é legal’. E aí quando a publicidade é cobrada, ela pode não recorrer do erro como deveria, mas ela retira. Ela não insiste, não tenta colocar goela abaixo. Quero dizer que ela considera essas colocações.

Foto: Reprodução/Facebook da atriz
Taís Araújo em Xica da Silva, sua primeira protagonista e primeira negra num papel principal, em 1996
Taís Araújo em Viver a Vida (2009), como a protagonista Helena
Taís Araújo como Maria da Penha, protagonista de Cheias de Charme (2012)
Foto: Reprodução/TV Manchete
Foto: Reprodução/TV Globo
Foto: Reprodução/Instagram da atriz

3-Lázaro fala no livro “Na minha pele”, lançado este ano, que houve um momento em que não quis aceitar papeis em que precisaria usar armas de fogo, para não ajudar a reforçar a imagem do homem negro violento, que é familiarizado com esse objeto. Você já teve algum tipo de experiência como essa, em que não quis reforçar a imagem da mulher negra em relação a estereótipos? Ou isso veio com o tempo, ainda acontece?

 

Hoje em dia que eu tenho consciência, sim. Mas no início da minha carreira, isso não passava pela minha cabeça, não era consciente a esse ponto, de saber que a narrativa sutil, né, de personagens, a coisa do estereótipo já massacrado, não tinha essa consciência, não. Hoje em dia, eu tenho. E aí muda tudo, né, a análise dos personagens, de um trabalho que você quer participar.

 

4-Você chegou a negar algum personagem, hoje em dia, para não reforçar um estereótipo?

 

Não, não. Ainda não.

Foto: Reprodução/Facebook da atriz
Projeto: Olha pra mim (@projetoolhapramim;@thi.santoss).
Foto: Thiago Santos/Reprodução/Facebook da atriz
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