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Cinema e novela:
quem representa mais?

“Eu acho que a novela trabalha numa chave de tentativa de demonstração de que nós somos, mesmo que atrapalhadamente, uma democracia racial. A novela, ao longo da sua história, trabalhou muito forte com esse projeto”. Essa declaração do cineasta e pesquisador Joel Zito de Araújo, autor de A Negação do Brasil, dada em entrevista para esta reportagem, se refere a um dos três gêneros mais assistidos pelos brasileiros em 2015, ao lado de noticiários e filmes, de acordo com o instituto Kantar Ibope Media. Como ele mesmo conta na obra que analisa trinta anos do gênero (1960 ao fim de 1990), a relação entre brancos e negros nas histórias contadas nas teleproduções acontece geralmente de forma pacífica e cordial.

 

Como narra no livro, nas tramas da Globo dos anos 1970, assim como nas da extinta TV Tupi, “não existe conflito nem ódio entre raças, embora existam personagens brancos preconceituosos e racistas”.

 

Nas novelas que traziam temáticas escravocratas, como A Escrava Isaura (1977) e Sinhazinha Flô (1978), também apresentavam a relação entre negros e brancos de forma cordial, até certo ponto, muitas vezes fazendo com que esse último grupo quase sempre tivesse papel fundamental para o fim do regime escravista, sem a participação efetiva dos negros.

 

“Somente nos anos 80, época em que as novelas começaram a demonstrar que o fim do trabalho escravo não significou a criação imediata do paraíso racial brasileiro, é que crescerá o interesse em transmitir uma visão histórica da participação do negro na luta abolicionista”, afirma no capítulo O Ciclo Abolicionista da Televisão Brasileira.

 

E essa mudança viria com a novela Pacto de Sangue (1989), que trouxe, segundo contagem realizada pelo autor, 27 personagens, o maior elenco negro encontrado em todas as produções do horário das seis da Globo, nas décadas 70 e 80.

 

Mas o mais importante foi como essa representação aconteceu. “Pacto de Sangue foi a novela em que mais encontramos, nos personagens negros, as novas atitudes diante do escravismo e do racismo”, afirma no livro. “Embora as principais histórias de amor fossem conduzidas pelos personagens brancos [...] existiam ali casais negros, famílias afro-brasileiras e personagens mulatos, todos eles demonstrando orgulho de sua ascendência africana”, argumenta na obra.

 

No entanto, em entrevista para essa reportagem, o autor relata uma diferença básica entre a representação da relação entre negros e brancos nas novelas brasileiras no outro segmento cultural mais consumido pela população: o cinema. De acordo com ele, essa tentativa de mostrar o Brasil como um lugar em que é possível a convivência entre negros e brancos de forma relativamente pacífica e a caracterização do racismo apenas para os personagens vilões das histórias, a fim de acentuar as maldades destes, não foi absorvida de forma plena pelas histórias transmitidas na tela grande.

 

“O cinema teve dificuldade de compreender a dimensão do racismo na sociedade. O cinema progressista, de vanguarda, teve dificuldade de assumir que a questão racial é grave no Brasil, que o racismo é até mesmo estruturante no país. Mesmo assim, o cinema brasileiro gostou mais de representar a violência nas favelas, o problema no narcotráfico”, afirma. Fato disso é, por exemplo, os filmes Cidade de Deus (2002), de Fernando Meireles, e Tropa de Elite (2007), de José Padilha, que abordam o tema da violência nas favelas, tráfico de drogas e corrupção policial. O primeiro teve quatro indicações ao Oscar, uma delas pela direção; o segundo filme de Tropa de Elite, intitulado Tropa de Elite - O inimigo agora é outro (2010), é a segunda maior bilheteria da história do cinema brasileiro.

 

Mais do que isso, em seu livro A Negação do Brasil, o autor afirma que filmes como Compasso de Espera, que tinha como protagonista o ator negro Zózimo Bulbul, direção e roteiro de Antunes Filho, e Na boca do mundo, dirigido pelo também ator negro Antônio Pitanga são exemplos de filmes lançados entre os anos 40 e 70 que enfatizaram “a impossibilidade de uma relação amorosa entre as duas raças e desenvolveu histórias que tematizavam a existência de um mesmo sentimento entre elas, o amor-ódio, e tendiam a finalizar os romances interraciais com fatalismo ou tragédia”.

 

Como explica a socióloga e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Liana Lewis, a forma de enxergar o negro e as relações com pessoas brancas acontece, no Brasil, de forma diferente da que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo. Ela cita que, no país norte-americano, uma pessoa que, mesmo aparentando fenotipicamente ser branca, se houver parentesco com uma pessoa negra, isso será um ponto de definição para saber a qual grupo racial ela pertence.

 

“No EUA vigora o que eles chamam da Lei de Uma Gota de Sangue. Você pode ter as feições brancas, a cor da pele extremamente branca, mas se você tem um avô, um pai, um bisavô que seja negro, isso vai contar como definidor da tua raça, do teu grupo racial”, explana.

 

A socióloga afirma ainda que essa forma de identificação por meio de laços sanguíneos nada mais é do que mais uma maneira particularmente norte-americana de praticar o racismo. “E é bem interessante, na verdade, porque essa política dos EUA vem de uma política racista historicamente. Os senhores de escravos queriam manter sob a sua possessão alguém que fosse descendente de negro. Só que esse tipo de classificação foi apropriado pelo movimento negro, de modo a afirmar a identidade racial para um grupo muito mais amplo, do que se ficasse muito restrito à questão fenotípica”, explana.

Alex R. Hibbert interpreta Chiron durante a infância, no filme Moonlight (2016) Foto: Divulgação

Em A Negação do Brasil, Joel Zito argumenta que essa forma de classificação serviu para criar ou reforçar alguns estereótipos no cinema norte-americano, como o do mulato trágico, já que, de acordo com o que ele diz no livro, “a condição do mulato na sociedade norte-americana, ao longo do século XX, pode ser ilustrada pelas transformações na história dos personagens negro-mestiços no cinema de Hollywood”. Segundo o autor, esse estereótipo pode ser identificado como sendo “pessoas simpáticas, agradáveis, vítimas de uma divisão racial herdada, embora a tragédia fosse o único desfecho para aqueles que tentassem ultrapassar a linha de cor”, afirma no livro.

 

Numa coluna publicada em 5 de setembro, no site da Revista Continente, intitulada Por que não existe band-aid preto?, a jornalista Débora Nascimento cita exemplos de avanços na representação dos negros observados no cinema norte-americano. Um deles é Corra! (Get Out!, 2017), que faz uma releitura do clássico Adivinha quem vem para jantar (Guess Who's Coming to Dinner, 1967), mas trazendo o terror ao invés do drama.

 

Outros exemplos de inovação da representação de pessoas negras no cinema atual norte-americano elencados pela jornalista em sua coluna são Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures, 2016), protagonizado por três mulheres negras e indicado ao Oscar e A Torre Negra (The Dark Tower, 2017), com o ator Idris Elba no papel principal. Mas o principal filme dentre os destaques da jornalista é Moonlight (Moonlight, 2016), ganhador do Oscar 2017 de Melhor Filme, após a polêmica do OscarSoWhite do ano anterior, quando nenhuma das quatro categorias de atuação tiveram representantes negros.

Cena do filme Corra! (Get Out!, 2017). Foto: Divulgação
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