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A pele da violência

“Há uma coisa que talvez só Taís [Araújo], Tania Rocha (minha empresária) e alguns poucos amigos saibam. Recusei muitos trabalhos em que teria que usar arma de fogo. Recusei porque a imagem que ficaria era a do negro com uma arma na mão… e isso num contexto de normalidade. Essa cena me apavora”, escreveu Lázaro Ramos em Na minha pele, livro lançado em 2017 e no qual reflete sobre sua carreira como ator desde o teatro até a televisão, passando pelo cinema, observando também a condição de ser negro no Brasil.


Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do Departamento Penitenciário Nacional, em 2014, 48% das unidades prisionais do país puderam fornecer os dados relacionados à raça ou etnia dos presos e 14% afirmaram ter condições de repassar apenas parte dos dados. No total, as informações fornecidas se referem à 45% do total de presos (274.315 pessoas). Desses 45%, foi possível calcular que 67% da população carcerária são negros. Além disso, em todas as cinco regiões do Brasil a quantidade de negros presos (homens e mulheres) é proporcionalmente maior do que a da população geral dos estados. Ou seja, o quantitativo de negros dentro das prisões é percentualmente maior do que fora delas. E essa discrepância é mais evidente na Região Sudeste, que tem 72% da população prisional composta por pessoas negras, enquanto fora das celas os negros são 42%. 

   Proporção de negros dentro e fora das prisões

Na outra ponta, a de jovens assassinados no país, os negros também lideram o ranking de pessoas que perderam a vida. De acordo com o Mapa da Violência de 2014, houve queda do número de homicídios da população branca e aumento na população negra (no estudo, o somatório das categorias de preto e pardo dentro da sociedade brasileira e classificadas no IBGE). Segundo o estudo, na população total, houve crescimento de 38,7% no número de homicídio de negros, entre 2002 e 2012. Apenas entre os jovens, o número de negros mortos aumentou 32,4%, no mesmo período.

Nas novelas, a pesquisa contabilizou que, em 20 anos, 12 papéis foram colocados na categoria de “personagens problemáticos”, ou seja, que eram motivos de transtorno para a família ou que eram usados na categoria de merchandising social,como alcoólatras, bad boys ou que abandonaram o lar. Dentre eles, metade é identificada como bandido.

 

A novela Totalmente Demais (2015), por exemplo, traz dois personagens classificados assim, Jacaré (Sérgio Malheiros) e Braço (Dhonata Augusto). Ambos vivem nas ruas e perseguem os personagens principais, Jonatas e Eliza, interpretados por Felipe Simas e Marina Ruy Barbosa, respectivamente.

Na primeira novela de Manoel Carlos que trouxe uma Helena negra (Taís Araújo), Viver a vida (2009), uma parte da família da protagonista tinha envolvimento com crimes. A irmã de Helena, Sandrinha (Aparecida Petrowki), namorava um homem negro descrito como marginal e com passagens pela polícia, Benê (Marcello Melo Jr.). Ele acaba morrendo nas mãos de traficantes.

Mas o personagem negro classificado na categoria de bandido mais reconhecido atualmente (não entrou na pesquisa porque a novela estreou este ano) é Sabiá, interpretado pelo ator Jonathan Azevedo, de A Força do Querer, traficante e líder do Morro do Beco, um dos principais cenários da trama. A todo momento, ele é visto com armas nas mãos ou cercado por elas. Imagem que o ator Lázaro Ramos afirmou em seu livro preferir evitar.

 

A pesquisadora Cristina Brandão, professora titular da Graduação e colaboradora do Programa de Mestrado “Comunicação e Sociedade”, da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (Facom / UFJF), chama a atenção para a representação de um personagem negro como  traficante, o sentido que isso traria para os telespectadores.

Fonte: Infopen, 2014

  Centro-Oeste
   73% presos

         57% população geral

        Sul
   
33% presos

     21% população geral

 Norte 

 83% presos

   76% população geral    

Sudeste

72% presos
42% na população em geral

    Nordeste
  80% presos

       

           71% população geral
 

“As mensagens ocultas na representação do negro Sabiá, como traficante cruel e poderoso, têm impacto sobre a consciência das pessoas. Afinal, o negro alcança um status social com dinheiro, crimes e armas. Ele produz uma réplica da desigualdade social entre as classes. A novela negligencia outras esferas de poder dos homens negros. O estereótipo está ali representado: negro, favelado e traficante”, pontua.

 

A pesquisadora faz um contraponto com a personagem Leila, interpretada por Lucy Ramos, uma arquiteta bem sucedida, de classe média alta e casada com um dos personagens centrais da história das 21h escrita por Glória Perez. De acordo com Brandão, a retirada da personagem da novela foi um ponto negativo da trama, pois a representação de uma mulher negra em posição de destaque dentro de um produto da teledramaturgia poderia contribuir para a engrandecimento da mulher negra da vida real.

 

“Na telenovela, os personagens encontram-se integrados num denso tecido de valores de ordem cognoscitiva, política e social e são esses valores que atraem a audiência, por relacioná-los à sua rede de extensão social, de amigos, vizinhos, colegas de trabalho ou membros de família”, defende. “A audiência cria expectativas em relação aos personagens e a representação simbólica da negra em um patamar mais alto da sociedade, ao meu ver,  deveria ser mantida pois sua saída do elenco anula o negro, simbolicamente”, afirma.

Cristina ainda comenta que a personagem Leila serviria também para anular a posição da mulher negra apenas como objeto sexual representado nas novelas. “As mulheres são o público-alvo da telenovela, portanto, as representações em posições subordinadas ou a ausência da personagem na trama anula, simbolicamente, a mulher negra em processo de afirmação além da simples beleza e objeto sexual”, considera.

 

Sobre essa representação de personagens positivos e negativos da população negra, a socióloga Liana Lewis comenta que os dois tipos proporcionam impactos na sociedade de diferentes formas. No entanto, a imagem negativa é muito mais reproduzida nos meios de comunicação de massa e, por vezes, acaba servindo de base para ataques contra essa população.

 

“Acho que ambos [positivo e negativo] são muito determinantes da forma como o público em geral vê esses dois grupos. A questão do impacto negativo é porque a mídia, os meios de comunicação de massa, especialmente as telenovelas, acabam reproduzindo de maneira muito forte e de maneira recorrente os estereótipos”, pontua. “Esse estereótipo [do homem negro violento] é muito arraigado no imaginário da sociedade e acaba, na verdade, servindo de base para o genocídio, por exemplo, da juventude negra. Porque quem mais é assassinado no Brasil são os homens negros jovens que são vistos pela polícia e pelos outros grupos, como um grupo potencialmente agressivo e potencialmente assassino”, observa.

Jonathan Azevedo como Sabiá, em A Força do Querer (2017). Foto: Fábio Rocha/Gshow
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