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Afinal, mudou
alguma coisa?

A socióloga Liana Lewis define estereótipo como sendo a simplificação de uma característica relacionada a um grupo ou indivíduo. “Uma característica que pode fazer parte dos vários grupos que é reduzida e fixada a apenas um. O estereótipo é historicamente realimentado”, explica.

 

Como apontou nosso levantamento feito com as novelas exibidas entre setembro de 1996 e dezembro de 2016, muitos dos estereótipos apresentados pelo pesquisador Joel Zito de Araújo em seu livro A Negação do Brasil, referência no assunto, permaneceram. Os exemplos mais comuns encontrados foram os dos negros sendo representados em posições subalternas, das mammies (esse modelo permanece com mais frequência na categoria das personagens “empregado de família”, como na novela Êta Mundo Bom, de 2016, com Manuela, a empregada - quase escrava - interpretada pela atriz Dhu Moraes).

 

Tem-se ainda o negro colocado ou não em posição de classe média. Além das categorias “empregado de alto escalão” e “profissões que necessitam de faculdade”, que somam 59 personagens, pode-se considerar os exemplos presentes em “pequeno/micro empresário”, que apresentam donos de bar, salão de beleza, pequenos restaurantes, pousadas e etc, totalizando 23 personagens na pesquisa realizada para esta reportagem.

Além desses, Joel Zito analisa no livro os negros como escravos, papel esse dado quase que exclusivamente aos atores negros (temos o exemplo a polêmica escolha de Lucélia Santos, atriz branca, para protagonizar  a primeira versão de A Escrava Isaura, da TV Globo, 1977, e Cláudia Abreu, em Força de um Desejo, 1999, uma escrava branca entre as centenas negras). No entanto, nos últimos 20 anos, na emissora, apenas três novelas trouxeram a temática escravocrata, sendo a última Sinhá Moça 2ª versão, em 2006.

Mas nem com essa temática, de acordo com o levantamento para esta reportagem, a quantidade de personagens negros ultrapassou a de brancos. Em Força de um Desejo, a proporção é de 20% de atores negros; A Padroeira (2001), 14,6%, e Sinhá Moça 2ª versão trouxe a maior quantidade, 28,5%.

Ruth de Souza e Clementino Kelé em Sinhá Moça 2ª versão, 2006. Foto: Márcio de Souza/TV Globo/Memória Globo

Em todas, no entanto, como apontou Joel Zito em A Negação do Brasil, e como foi percebido em nossa pesquisa, havia um personagem branco plenamente consciente do horror que era o sistema escravagista e lutava bravamente contra ele. Na novela com maior quantidade de negros proporcionalmente, Sinhá Moça, a personagem título (Débora Falabella) fazia esse papel juntamente com o homem que amava, Rodolfo (Danton Mello).

Para Araújo, essa é uma característica que persiste, mesmo em diferentes meios que não somente o escravocrata. “Existem alguns estereótipos também a ver com a noção de branqueamento, algumas formas de transformar personagens brancos como uma reificação do mito da princesa isabel, como se os brancos fossem mais conscientes da questão racial do que os negros, fazendo mais pela luta contra o racismo, eu vejo a repetição desse tipo”, explica em entrevista.

Mas como todas essas formas de representação das pessoas negras impactam na visão da sociedade sobre esse grupo? Antes disso, o que seria, de fato, representação?

 

A socióloga Liana Lewis acredita que representação significa tanto a quantidade de pessoas negras dentro de uma telenovela quanto a forma como cada personagem é descrito e desenvolvido ao longo da trama. Acrescenta ainda que representação também tem que condizer com a realidade do local onde a novela foi produzida. “Eu diria como um lugar de disputa. Quando a gente fala tanto a questão racial quanto a questão de gênero, sexualidade e classe, é um campo de disputa pela forma como essas pessoas vão ser vistas pela sociedade e como essas pessoas vão ser inseridas na sociedade. A gente não pode dissociar essa questão da representação da realidade”, explica.

 

Joel Zito vai além e questiona como o próprio país pode ser visto fora de suas fronteiras. “A dificuldade da telenovela de representar a diversidade racial brasileira é um problema grave. De uma autora moçambicana Paulina Chiziane me dizer ‘olha, vendo o Brasil pelas telenovelas lá da África, a gente tem uma impressão, primeiro, de que o Brasil é um país branco, que os negros são minoria. E segundo, que essa representação da subalternidade também nos incomoda de ver de longe, como africanos’”, comenta.

 

Para o cineasta, essa forma de representação é um problema permanente. “Não dá mais para fazer telenovela em cima da ideologia do branqueamento, em cima da representação de que nós vivemos dentro de um mundo branco e que os negros são periféricos, minoria, em processo de extinção. Isso é um problema muito grave. É você não encontrar a sua imagem no espelho. A telenovela é uma imagem cultural do espelho cotidiano do Brasil. Você bate o olho lá, você está ali, está invisível. Então isso é um absurdo como representação”, afirma.

Pela forma como os negros têm aparecido nas telenovelas, a pesquisadora Cristina Brandão não vê melhoras. “Os negros e pardos representam 54% da população, mas na telenovela essa representação de uma camada imensa da população brasileira é ínfima. Dessa forma, não creio que a telenovela avançou tanto nas representações de personagens negras”, diz.

Araújo, apesar de fazer ponderações, afirmando que grande parte das mudanças vem de um movimento ativista de dentro dos estúdios da Rede Globo, com atores e outros membros de produção das telenovelas, observa que esses avanços, infelizmente, não incluem as outras emissoras brasileiras. “Falo dessas mudanças no universo da Globo. Não o universo das novelas do SBT, da Record. A Globo está passível de críticas porque é o canal líder, tem muita influência. Os outros canais, incluindo a Bandeirantes, nunca fizeram esforço nenhum de ter uma postura avançada. Eles são mais conservadores no sentido de absorver um movimento social, uma crítica social que demanda uma representação mais positiva da comunidade negra”, observa. A primeira protagonista negra da Record estreou em 2016, na novela Escrava Mãe, história anterior à trama de A Escrava Isaura, que, como o nome já indica, tem como ambientação o período escravagista.

 

No entanto, ele acrescenta que essas mudanças também podem ser uma resposta a outro movimento: o crescimento dos assinantes de streaming. Para Joel Zito, o aumento cada dia maior de pessoas que estão assistindo a plataformas como Netflix faz com que a Globo perceba essa migração e promova mudanças de representação. “Eu acho que a Globo está sentindo a perda da nova geração. Está percebendo que essa nova geração está indo para o streaming, está indo para a Netflix. Está se identificando com os personagens negros da Netflix. Então, o grande competidor da Globo não é o SBT ou a Record. O grande competidor da Globo é a Netflix”, avalia.

 

De acordo com uma matéria publicada pelo jornal O Globo, a Netflix teve um avanço de 60% de lucro no segundo trimestre de 2017 e ultrapassou a marca de 100 milhões de assinantes, mais da metade residindo fora dos Estados Unidos.

 

Como, talvez, uma forma de competir com plataformas como a Netflix, a Globo lançou, em novembro de 2015, a plataforma GloboPlay, que, no primeiro ano, conquistou 9,5 milhões de downloads, segundo informações do próprio aplicativo. Dos cinco tipos de vídeos vistos durante os primeiros 12 meses, três foram novelas.

 

Conforme o Kantar Ibope Media, televisão é o meio de maior penetração no Brasil, sendo as preferências dos telespectadores os noticiários, filmes e novelas. Quem consome mais são as mulheres (53%) e a classe C (47%).

 

Também segundo o Kantar Media, o consumo de internet no país tem se tornado cada vez mais democrático. O crescimento do consumo saltou 32% de 2010 a 2015. Aqui, as mulheres também dominam o perfil consumidor, com iguais 53% da televisão, mas, dessa vez, é nas classes AB onde está a maior quantidade de internautas (51%).

 

O professor de comunicação da UFPE Diego Gouveia analisa o panorama. “A grande mudança na TV mais recentemente se deve ao acesso à internet. A gente fala hoje sobre TV transmídia, que seria essa TV que não está mais apenas em uma tela, mas que oferta, aos consumidores, conteúdos em múltiplas plataformas. As redes sociais modificaram absolutamente a forma como se assiste à televisão hoje em dia. O sofá da nossa sala de casa ganhou uma expansão. Hoje, o sofá está nas redes sociais, por exemplo”.

 

Por todos esses fatores, o cineasta e pesquisador Joel Zito Araújo diz estar otimista sobre o futuro da representação do negro nas telenovelas, principalmente na TV Globo, emissora que possui 13% da sua programação voltada para esse produto, de segunda a sexta, no horário nobre (18h às 24h), dados de 2016 do Kantar Media. “A Globo, que não quer perder o seu poder, nem dinheiro, está tentando reajustar os seus paradigmas na questão da representação do negro e está muito consciente dessa nova juventude, dessa força da juventude negra hoje, na sociedade, nas mídias sociais. Então eu acho que nos próximos dez anos vai ter muita mudança. E como a Globo é líder de audiência, ela vai naturalmente influenciar os outros canais”, aponta.

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