top of page
O amor tem cor?

Pode parecer estranho (ou, dependendo do ponto de vista, positivo), mas grande parte das relações amorosas de personagens negros nas telenovelas são interraciais, ou seja, mulheres negras com homens brancos ou o inverso, de acordo com o levantamento feito com 104 novelas, exibidas no período de 20 anos na TV Globo. Alguns exemplos de casais formados por pessoas negras nas novelas e que participaram ativamente da trama são os personagens Neidinha (Elina de Souza) e Théo (Rafael Zulu), na novela Em Família (2014). A filha dela, Alice (Erika Januza), também namorava um rapaz negro, Matias (Jorge Sá).

 

Em Da Cor do Pecado, novela que trouxe a primeira negra num papel principal da Globo, interpretada por Taís Araújo, também havia um casal intrarracial, composto pela personagem Preta que namorava Dodô (Jonathan Haagensen). No entanto, ele tinha um caráter duvidoso e os dois não terminaram juntos - Preta acabou a novela com o protagonista branco Paco (Reynaldo Gianecchini).

 

Mas o casal formado por atores negros em telenovelas que mais teve repercussão durante o período analisado foi o formado por Carolina Miranda (Camila Pitanga) e André Gurgel (Lázaro Ramos), na novela Insensato Coração (2011), das 21h. Os dois, aliás, que quase dois anos depois voltariam a contracenar em Lado a Lado.

Ela, descrita como uma alta executiva de marketing; ele, um designer de renome, acabam se envolvendo durante a trama, mas enfrentam alguns obstáculos, sendo o principal deles a aparente incapacidade de André de conseguir se relacionar com uma única mulher.

 

O ator Lázaro Ramos, em seu livro Na minha pele, explica que, na época, seu personagem foi vendido para o público como o primeiro galã negro em telenovelas. O intérprete, no entanto, diz que nunca aceitou esse título, justificando que, para ele, André era um personagem complexo, “tão complexo que, acho, nem eu nem o público brasileiro estávamos prontos para assimilá-lo”, comenta. “Estava colocado ali o desejo sexual das mulheres”.

A publicitária Josefa Ferreira, que realizou um estudo sobre a representação da mulher negra no cinema brasileiro como trabalho de conclusão de curso, abordou como tema de pós-graduação o “Preterimento e solidão da mulher negra nos relacionamentos intrarraciais”. Josefa explica que o assunto chegou até ela de forma bastante pessoal, a partir de experiências pelas quais passou.

“A questão racial é pertinente na minha vida. Os trabalhos são parte de mim”, conta em entrevista. “Quando eu era mais nova eu era sempre a amiga, a que segurava vela. Para tentar compensar isso eu fazia questão de ser reconhecida pela minha inteligência”, relembra.

 

Nos seus estudos, ela verificou que, para os homens negros, a mulher branca é vista como um “prêmio”, principalmente quando estão em processo de ascensão social. “Para o homem negro, ter um relacionamento com uma mulher branca é um ganho de status na sociedade. A mulher branca é vista como uma forma desse homem ser aceito na sociedade”, pontua.

Para ela, quanto mais a mulher negra está dentro de um padrão branco, mais é aceita pelo companheiro da mesma etnia, o que Josefa denomina de colorismo. “Quanto mais uma mulher está no padrão branco [cabelos lisos, traços finos, olhos claros], mais fácil ela conseguir um relacionamento com um homem negro”.

A mestra em Ciências Sociais e autora do livro Virou Regra?, que analisa o preterimento da mulher negra pelo homem negro e como isso afeta a formas de relação da mulher de uma forma geral, a escritora foi a locais públicos da cidade de São Paulo, como teatros e supermercados, ver como eram compostos os casais. Em sua observação concluiu que a maioria dos homens negros analisados durante a pesquisa estavam em companhia de mulheres brancas.

Na novela Insensato Coração, André Gurgel e Carolina Miranda terminam separados. Ela com um homem branco; ele, após trair Carol com uma mulher branca, acaba solteiro.

Ele cita, no entanto, que o personagem sofreu rejeição do público, que acusava o ator de ser inadequado ao papel. “Eu, felizmente, sei por experiência própria que o desejo na vida real não se enquadra no padrão do galã de traços quase femininos, olhar chorão, cabelo liso penteado para o lado. O fato é que essa cara com rosto negroide, boca e olhos grandes, nariz largo, sofreu rejeição”, aponta Lázaro.

 

Por outro lado, a socióloga e professora adjunta da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Liana Lewis aponta para outro problema em relação ao personagem, dessa vez menos a ver com a reação do público e mais com construção feita pela mídia de uma maneira geral. Para ela, o que era para ser visto como um galã, nada mais é do que o reforço da hipersexualização masculina. “Ele era guiado pelo erotismo, pelo corpo dele, então reforça essa ideia do homem negro que não ama a mulher negra e, no final, ele serve de fetiche para a mulher branca e fetichiza também a mulher branca. E a mulher negra que, no final, vai ser valorizada pelo homem branco apenas”, explica.

De acordo com os dados do Censo 2010 publicados em 2012, apresentados numa reportagem no portal de notícias UOL, 70% da população brasileira prefere se relacionar com pessoas no mesmo grupo etnico-racial. No entanto, quando se analisa a preferência de homens e mulheres negros, nota-se uma pequena diferença. Quase 40% deles escolhem mulheres negras para se relacionarem. Esse número cresce dez pontos percentuais quando é analisada a escolha das mulheres negras (50,3%). Na relação com pessoas brancas, o estudo revelou que há uma quantidade maior de homens negros que se relacionam com mulheres brancas (26,4%) do que o contrário, ou seja, mulheres negras com homens brancos (25,5%). No total, o levantamento do IBGE mostra que a grande maioria das pessoas brancas tendem a ter relações amorosas do mesmo grupo racial (69,3%), enquanto a relação entre pessoas negras não chega nem a metade (45,1%).  

Camila Pitanga e Lázaro Ramos em Insensato Coração (2011). Foto: Foto: TV Globo/ Rafael França
bottom of page