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Influência de mão dupla

Apesar dessa falta de representação de diferentes classes, a controvérsia inicial, de que a teledramaturgia brasileira mostra ou não o país como ele realmente é, traz também a questão de até onde vai a influência da trama na sociedade e vice e versa. Ronsini e Gouveia têm opiniões complementares.

 

Para a pesquisadora, é uma influência de mão-dupla. “Depende também do autor. Por exemplo, em Velho Chico, a audiência não importava muito. O autor que estava imprimindo a pauta, com cerca autonomia, para essa sociedade. Ali temos um exemplo raríssimo de uma certa autonomia, do que eu considero uma obra”, explica Veneza. “ De alguma maneira, a sociedade também [vai ser influenciada], se ela estiver preparada para aquilo que a novela está propondo como pauta, a novela vai continuar. Se a audiência não estiver, ela vai parar. É a audiência que vai determinar a resolução do que a novela está propondo”, finaliza.

 

Diego acrescenta a noção de agendamentos de temas que a telenovela sugere à sociedade. “A novela pauta a sociedade agendando alguns temas para discussão e também é pautada pela sociedade a partir de temas em discussão em uma determinada época”, pontua. “Considero que as telenovelas passaram a abordar a partir das pressões sociais e não porque as emissoras quiseram do nada falar sobre o assunto. Foi uma construção e uma conquista dos movimentos sociais”, considera. “O avanço dos movimentos sociais e a pauta de suas reivindicações ganhou espaço na mídia e, não podia ser diferente, passou a ocupar espaço nas telenovelas”.

 

E um dos momentos mais significativos da teledramaturgia, em que a pressão social citada por Gouveia aconteceu, dessa vez vinda de dentro dos set de filmagens, por trás das câmeras, foi em relação à representatividade negra. A Cabana do Pai Tomás, a mesma novela que levava a ambientação para bem longe do Brasil, não fazia isso apenas geograficamente.  

 

A polêmica veio por causa da escalação de um ator branco para interpretar um personagem negro na história baseada no romance homônimo da escritora estadunidense Harriet Beecher Stowe.

 

Diferente do ambiente encontrado nos Estados Unidos da época, em que o movimento negro era muito mais fiscalizador e estava envolvido “nas lutas pelos direitos civis contra os preconceitos e discriminações das televisões norte-americanas”, como explica Joel Zito em A Negação do Brasil, não havia uma resistência negra aqui no país.

 

Como citado no site Memória Globo, que reúne dados e informações sobre todas as telenovelas e outras programações da emissora, no período em que A Cabana do Pai Tomás foi lançada era comum o patrocínio por parte de grandes empresas de publicidade, como a Colgate-Palmolive, que financiou a novela e exigiu que Sérgio Cardoso, ator branco e galã da época, fosse o protagonista. Resultado? Para se “fantasiar” de negro (método conhecido como blackface), Cardoso “pintava o rosto e o corpo de preto, usava peruca e punha rolhas no nariz”, como relata o site.


Se consultados os jornais do período, que abordaram o assunto, é possível ver as inúmeras opiniões sobre a questão. Atores contra e a favor que Sérgio Cardoso fosse o protagonista de uma história que, pela primeira vez, trazia a maioria do seu elenco com atores negros.

Marina Nery como Leonor em Velho Chico (2016) Foto: Caiuá Franco/TV Globo/Memória Globo

Numa matéria publicada dia 16 de maio de 1969, dois meses antes da estreia da novela, o jornal O Globo trouxe a atriz Bibi Ferreira defendendo a escalação de Cardoso. “Todos nós, atores, gostamos de nos transformar. Eu gostaria de ter feito o papel da mulata Gimba, que foi um grande sucesso no nosso teatro. Por isso, acho excepcional o fato de Sérgio Cardoso encarnar o papel de um personagem negro na peça”, afirmou. Seu pai, Procópio Ferreira seguiu o mesmo raciocínio. “Acho que o Sérgio Cardoso é possuidor de um talento que o credencia a desempenhar qualquer papel. O resto não interessa”, sentenciou.


Por outro lado, assim como Lucy Ramos em A Força do Querer, que defendeu a permanência da sua personagem na novela por mostrar uma pessoa negra

em posição de destaque, o ator Milton Gonçalves afirmou, no documentário A Negação do Brasil, que não quis participar de um evento de apoio à escalação de Sérgio Cardoso. “Isso atrapalha toda a nossa luta de emancipação”, reclamou o ator Antônio Pitanga na matéria d’O Globo, que trouxe a maioria das falas a favor da escalação de Cardoso.

 

Apesar das defesas pela escalação de um ator branco para fazer o papel de um personagem negro, a novela foi um fiasco. Uma série de fatores, incluindo baixa audiência e um incêndio que causou prejuízo de cenários e outros materiais dos estúdios Globo, fez com que A Cabana do Pai Tomás fosse concluída mais cedo e lembrada muito mais pelas infelizes escolhas ao longo da trama (diminuir a participação de Ruth de Souza, esposa de Pai Tomás, e até mudar de posição seu nome na abertura da novela) do que pelo enredo.

 

“Se apostamos e defendemos a diversidade social, não faz o menor sentido o blackface. É dar vez, voz e visibilidade às diversidades culturais. Isso é assunto importante e urgente. Acredito que ao usar o blackface, é como se todo o discurso de diversidade social, defesa dos direitos humanos caísse. Não há justificativa para isso hoje em dia”, defende o professor Diego Gouveia.

 

Mas pegar um exemplo como esse serve para pensar que a representação de grupos sociais em telenovelas não vem apenas pelos personagens que aparecem, mas também por quem o faz. O que é analisado por Veneza Ronsini, que considera que as novelas não existem somente para o entretenimento, podendo ir muito além disso.

 

“É claro que as pessoas precisam de entretenimento. Há de mostrar a coisa lúdica, a leveza, para as pessoas sonharem, imaginarem. Não só uma ação pedagógica, de uma militância moralista”, pondera. “Mas toda mídia tem função social, não pode ser só o entretenimento burro, vulgar. O entretenimento não está dissociado dessa questão social”, analisa.

 

“A marca dela [da teledramaturgia], eu acho que é, de alguma maneira, falar sobre nós. Em termos estéticos, eu diria que a própria telenovela [de uma maneira geral] é uma obra admirável. A qualidade das produções, o investimento, a importância econômica do produto, equipes, atores. Eu acho que é muito importante para o Brasil”, observa Ronsini.

 

Mas de qual “nós” a novela da TV Globo vem falando desde a sua estreia nas telas? A quem pertence essa representatividade e onde os negros se encaixam?

Sérgio Cardoso, em Cabana do Pai Tomás (1969).  Foto: Memória Globo/Cedoc/TV Globo

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